Não há como a Fórmula 1 desagradar mais ao torcedor e contrariar mais o esporte.
Não basta a previsibilidade de corridas e campeonatos, o abismo entre as equipes, o som pífio dos motores, as ordens de equipe, o ambiente esnobe e blasé, as corridas feitas para VIPs em construções suntuosas, recheadas de aço escovado em circuitos monumentais erguidos em solos que beiram a infertilidade.
Não basta a previsibilidade de corridas e campeonatos, o abismo entre as equipes, o som pífio dos motores, as ordens de equipe, o ambiente esnobe e blasé, as corridas feitas para VIPs em construções suntuosas, recheadas de aço escovado em circuitos monumentais erguidos em solos que beiram a infertilidade.
Não bastou o mico eterno da Ferrari na Áustria em 2002. Não foi o suficiente que um piloto marcasse a pole e não largasse em primeiro – lembro-me de ter ocorrido com Räikkonen, em Monza 2005 e Schumacher em Mônaco 2012. Já não era ridículo em demasia aplicar a alguém a perda de 50 posições num grid em que largam 20 carros. Foi preciso que um piloto ganhasse a prova e não vencesse. Cruzasse a linha de chegada antes de todos e chegasse em segundo. Algo longe de ser inédito na história do automobilismo, mas que nunca ou raramente houve por motivo tão torpe.
A manobra de Vettel no retorno à pista em frente a Hamilton era para estar sendo saudada, celebrada, discutida, contestada. Aprove-se ou não a fechada de porta do ferrarista, deveria ser o movimento decisivo para consagrá-lo vencedor da prova, jamais o pecado capital que lhe tirou uma vitória com todos os méritos de suas mãos.
Talvez, eu disse TALVEZ, a punição fosse tolerável em certas circunstâncias. Corridas de gentlemen drivers, que horas após a prova precisam estar de volta aos seus escritórios e tomar conta de empresas que envolvem muito dinheiro, empregos e sustento para muita gente. Quem sabe corridas de garotos, pois não se coloca em risco a integridade física de crianças há tão pouco no mundo.
Nunca, realmente
NUNCA, deveria acontecer numa categoria que carrega a pecha de ser o
pináculo do esporte a motor no planeta. Que deveria ser a competição
maior, mais dura, que reunisse os melhores e dispusesse dos momentos
mais difíceis a que um competidor mergulhado nesta vida pudesse ser
submetido.
Para este escriba, é especialmente frustrante. Já estamos na semana das 24 Horas de Le Mans. No mesmo mês da Subida de Montanha de Pikes Peak. Há quinze dias, realizei um sonho de toda a vida ao assistir das arquibancadas as 500 Milhas de Indianápolis. Durante a semana, meio que ao acaso, acompanhei tudo o que pude do TT da Ilha de Man, a competição mais selvagem e ainda ligada à essência do esporte a motor como o conhecemos em boa parte do século XX ainda em vigor no planeta. Com motos num circuito de estradas de 60 quilômetros de extensão e um saldo de mais de 250 mortes em cem edições.
Para que?
Em meio a tantas competições grandiosas em que se olha no olho da morte, a dita categoria máxima escancara ao mundo o medo de uma pequena batida ou um mero toque – e nenhum dos dois aconteceu. É este o espetáculo apresentado pela TV a bilhões de pessoas em todo o planeta num domingo à tarde? Em que um dos astros do espetáculo é condenado por mostrar bravura, perícia e controle para recuperar-se de um erro e manter a todo custo, dentro de todos os parâmetros da esportividade, a vitória, aquilo que, afinal, é de fato a única coisa a interessar a qualquer um dotado de mínimo apreço por esta competição?
Em meio a este circo de desastres, salvou-se somente Vettel. Durante e depois da prova. A autenticidade de quem defendeu sua liderança com unhas e dentes – que lhe faltou em tantas ocasiões e até comprometeu os dois últimos campeonatos – foi a mesma para parar o carro fora do lugar, sair rumo ao caminhão da equipe, voltar pelos boxes do time rival, trocar as placas que identificam as posições finais dos carros de lugar e, na antessala do pódio, dar uma luz alta em Hamilton, que enfim adotou a discrição que o momento pedia e parou de se comportar como se fosse Cláudia Leitte no The Voice, como fazia desde a bandeirada.
Hamilton é fã incondicional de Senna. Na pista, é muito mais Senna do que Vettel.
Fora, Seb foi hoje muito mais como o brasileiro do que Lewis jamais fora.
Ainda sobrou lucidez e elegância ao alemão ao cochichar para Leclerc desfrutar do momento no pódio, momentos antes de levar um espirro de champanhe no rosto da desvairada representante da equipe Mercedes – OK, ela não tinha nada a ver com a história e estava muito feliz, mas podia prestar um pouco mais de atenção no mundo ao seu redor e perceber que estava no paraíso do mal-estar.
Ainda: foi ele quem pediu a palavra ao entrevistador Martin Brundle para defender Lewis das vaias que levava enquanto respondia à pergunta do ex-piloto, lembrando a situação similar – mas nem tanto – vivida pelo então piloto da McLaren em Spa 2008. Não era Hamilton quem havia tomado aquela decisão e causado tudo, disse Seb à audiência antes que todos se recolhessem.
Sobre a corrida belga de onze temporadas atrás: Hamilton cortou caminho a duas voltas do fim e foi malandro na hora de devolver a posição para Raikkonen, com quem disputava a liderança. A punição veio duas horas após o encerramento da prova. O crime do inglês foi bem mais discutível do que o retorno à pista de Vettel hoje, com o carro desequilibrado e num trecho apertado do circuito. Pode não ter sido justo. Foi muitíssimo menos deselegante e patético do que o episódio deste domingo.
Vettel, não bastasse ter o que há de mais sagrado nesta competição arrancado, ainda será punido. Por parar o carro fora do lugar, arrastar a placa, atrasar o pódio, incitar o público contra a direção de prova, chamar os comissários de bobos e feiosos e grudar um chicle na cortina da sala de imprensa antes da coletiva. É claro. É preciso seguir os protocolos. Fazer valer o livro de regras sobre o bom senso. Aplicar a lei na frieza de suas letras, ainda que a realidade mostre que ele possa ser tão útil para a competição quanto a Eguinha Pocotó foi para a música erudita da Armênia.
Trabalho no setor público. Fui aprovado em concurso. Devo admitir: não sei se tenho razão neste pensamento, mas estou num ponto da vida em que não vejo a hora de ir embora. Apodrece-me ver, diariamente, a burocracia prevalecer sobre a lógica, a vaidade que causa a morosidade, a necessidade não sendo suprida pela falta de capacidade – entre outras coisas, de ver o óbvio.
O automobilismo é uma paixão profunda. Vem desde muito antes do início da vida profissional. Dentre outras qualidades, serve como entretenimento, distração, fuga dos estorvos cotidianos com os quais nos acostumamos a sermos incapazes de mudar. A esperança utópica de que vinte, trinta ou quarenta sujeitos vão se dispor a fazer uma coisa e o melhor deles vai vencer. Os outros precisarão aguardar a próxima oportunidade. É o que deveria ser.
Neste domingo, não foi.
Até Balestre, em seus piores dias, ficaria encabulado.
Em 09 de junho de 2019, a Fórmula 1 virou a Prefeitura.
E isso é um vexame colossal para qualquer coisa. Principalmente para algo que se propõe a ser o maior do mundo em seu ramo.
Geferson Kern
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