segunda-feira, 20 de maio de 2019

Alonso fora da Indy 500 2019! By Geferson Kern


Texto do Geferson Kern - locutor

     Fernando Alonso e a McLaren fora das 500 Milhas de Indianápolis. Um clássico instantâneo do maior acontecimento automobilístico do planeta, cujas histórias, lendas e folclores são riquíssimas por si só. A expedição do duo de ícones da maior categoria de esporte a motor do planeta em solo ianque, em busca de um lugar iluminado na história, foi um desastre. Mas somente para eles. Para Indianápolis, é mais uma de tantas histórias de embasbacar os deuses do ceticismo. Pois desastre, para o maior espetáculo da Terra, seria não ser capaz de escrever uma história fabulosa como esta. Ou atentar contra sonhos muito mais modestos e cotidianos do que a Tríplice Coroa. Dependentes até a medula da mera presença no grid para que consigam sobreviver.

O bump que neste ano causou frisson mundial é uma velha tradição em Indiana. Esteve longos anos fora de cena como efeito da besteira histórica da divisão da Indy, em 1996. Voltou numericamente tímido no ano passado, quando vitimou o pole de dois anos antes, James Hinchcliffe, alvo de comoção por ser o protagonista de um antigo drama que já aniquilara gente do calibre de Emerson Fittipaldi, Al Unser Jr., Johnny Rutherford e Gordon Johncock – para ficar somente em alguns ex-campeões da prova, todos bumpados quando já tinham os rostos estampados no troféu BorgWarner. O número de inscrições maior do que o de vagas também limou, na ocasião, as pretensões de Pippa Mann, mas tal qual o canadense, ela soube se recuperar com maestria.



      Neste ano, Mann foi chamada para tentar voltar ao grid com o carro de uma equipe novata, a Clauson Marshall. Um time fundado no fim de 2016 e liderado por Tim Clauson, pai de seu ex-companheiro de 500 Milhas, Bryan Clauson, um gigante das provas em ovais de terra com midgets e sprint cars que falecera meses antes, aos 27 anos, ao se acidentar quando liderava uma destas provas – numa temporada em que buscava disputar nada menos do que 200 corridas ao longo dos 366 dias do ano. 

     A equipe de Tim e do entusiasta Richard Marshall tem como especialidade justamente as provas em dirt tracks, mas tal qual o filho do primeiro e motivador da fundação da escuderia, resolveu seguir o histórico e desvirtuado caminho natural do automobilismo americano: partir dos short ovals em busca da glória no pai dos superspeedways.

      O patrocínio não poderia ser mais providencial: a campanha Driven2SaveLives, que já havia estado com Pippa na malfadada tentativa de 2018. A iniciativa visa incentivar a doação de órgãos e multiplicar o exemplo do próprio Bryan: seus pais não sabiam que o filho era doador. Descobriram ao averiguar sua licença para dirigir após o óbito. Os órgãos do jovem asseguraram a sobrevivência de cinco pessoas que enfrentavam a agonia da fila de espera. Em suas próprias palavras, a vida de Tim e da esposa e mãe de Bryan, Diana, mudaria para sempre. Comovidos pelo gesto, lançaram uma campanha chamada Chasing 200, que buscava angariar ao menos duas centenas de pessoas que se declarassem doadores de órgãos. A meta foi rapidamente atingida e superada. Menos de um mês após a morte do filho, a família já havia conseguido cadastrar 3,7 mil novos doadores. Como a média é de que cada doador possa suprir as necessidades de até cinco pacientes em espera, era como se, potencialmente, Bryan, como motivador da campanha, pudesse ter salvado 18,8 mil pessoas.






     Quando anunciou sua estreia em Indianápolis com o número 39, utilizado pelo filho por toda a carreira, Tim disse que aquela também era uma forma de Bryan dar seu aval para a empreitada: afinal, o último carro de uma equipe oriunda das competições em dirt tracks sancionadas pela USAC que havia largado em Indianápolis fora em 1989, há 39 anos, quando Steve Butler pilotou um bólido alinhado por Jeff Stoops. Aconteça o que acontecer na prova, o desfecho já foi positivo: Tim correspondeu à mensagem que diz ter recebido do filho. Pippa superou o fracasso do ano passado. No sábado, primeiro dia de classificatórias, garantiu a última vaga do dia, o 30º lugar no grid. Em cima justamente do badalado Alonso, por uma diferença minúscula: 0,020 mph.

      O bicampeão mundial teria de tentar a sorte no Last Row Shootout, a versão contemporânea do mitológico Bump Day, em que os seis pretendentes às últimas três vagas do grid teriam uma tentativa cada para se assegurar entre os 33 que largam. Os rumores a respeito do que aconteceu na noite de sábado para domingo são muitos: a McLaren teria passado o chapéu no Gasoline Alley em busca de recursos para evitar o fiasco. Os ingleses teriam comprado amortecedores da velha parceira Andretti, buscado setup da Penske e/ou solicitado macetes a Carpenter. Nada menos do que os três times mais rápidos de Indy no mês. Fato ou lenda, o certo é que o espanhol, depois de um treino livre conturbado na manhã de domingo, conseguiu virar 227,353 mph, o que parecia suficiente para lhe garantir a última vaga no grid. 



      Até que apareceu Kyle Kaiser. Que não treinou pela manhã, nem ontem, nem patrocinador tinha: havia treinado a semana toda com um carro todo branco, somente com o número pintado na fuselagem. Dois mecenas abandonaram a empreitada já com o Mês de Maio em curso.


      Na semana encerrada hoje, Kaiser e Alonso se tornaram gêmeos desiguais, para usar uma expressão recorrente no automobilismo em tempos recentes. Designada, em geral, para se referir ao tratamento dispensado a Ayrton Senna e Roland Ratzenberger, após os infames episódios de Ímola ’94. Ambos bateram no mesmo ponto, a curva 3. 


     O espanhol ainda não havia engrenado no Speedway quando enfiou no muro seu McLaren, preparado no suntuoso centro tecnológico da equipe, na Inglaterra. Isso já na quarta-feira, segundo dia de treinos. Voltaria para valer apenas na sexta – especialistas dizem que os mecânicos do time laranja, pouco acostumados ao modus operandi da Indy, teriam de ter providenciado um carro para o espanhol mais rapidamente, como fizeram times concorrentes mais habituados à categoria –, a chamada Fast Friday, dia da colisão de Kaiser e quando os carros já aceleram com os níveis de potência que terão disponíveis nas classificatórias. O bom trabalho que o #32 fazia até então ia pelo ralo às vésperas do momento decisivo.

      Kaiser estreou na Indy com a Juncos no ano passado. Juntos, venceram a Indy Lights em 2017, ano da primeira Indy 500 da esquadra. Com o milhão de dólares que recebeu como prêmio, disputaram quatro provas em 2018, entre as quais as 500 Milhas. Para este ano, o time comprou um segundo chassis. Sem dinheiro, porém, restringiu seu programa à prova máxima e alguma outra aqui e acolá em que houvesse dinheiro. Este segundo chassis, preparado para circuito misto e usado na etapa de Austin, era a salvação para que a corrida não terminasse uma semana antes da largada. O time sediado na Califórnia e dirigido por um argentino, Ricardo Juncos, juntou todo o seu pessoal para tanto: membros das operações da equipe na Lights, Indy Pro 2000 e IMSA se juntaram à empreitada. 

     Quando o primeiro dia de classificatórias chegou ao fim, os mecânicos já somavam 42 horas ininterruptas de trabalho. Juncos conta que era a hora de todos irem dormir, pois a exaustão os conduzia a cometer erros no processo. Seria preciso finalizar o carro na manhã de domingo, quando Alonso, piloto de um time de Formula 1 ajudado por Penske, Andretti, Carpenter e que se associou a Carlin para retornar à Indianápolis, poderia utilizar o treino livre para testar as mudanças na máquina inscrita com o número 66.

      Atenta, a mítica de Indy tratou de aproveitar a oportunidade para agir: a chuva no fim da manhã atrasou em quatro horas o início da sessão que definiria a última fila. O próprio Juncos reconhece que a demora beneficiou seu time: o adiamento proporcionou aos seus comandados atentar a detalhes para os quais simplesmente não teriam tempo hábil, caso o Last Row Shootout fosse iniciado na hora prevista, com transmissão de TV em rede nacional. Detalhes que foram gigantescos, tais quais os 0,019 mph que Kaiser, o último a entrar na pista, foi mais rápido que Alonso. O espanhol estava bumpado por um rapaz que ainda frequentava o primário, de nove para dez anos de idade, quando ele conquistava o mundo com seu Renault azul e amarelo.


      O ianque Kaiser, 23, ingressou no programa Road to Indy em 2013, quando Don Fernando, ainda na Ferrari, iniciava seu calvário desportivo. A britânica Pippa, 35, começou no automobilismo quando Alonso ingressou na equipe de F1 da montadora francesa, em 2003. De lá pra cá, conquistou uma vitória e três poles em todas as categorias pelas quais passou. Todas em 2010, quando foi quinta colocada na Indy Lights pela Sam Schmidt, sua melhor posição final em um campeonato nestas 16 temporadas. Alonso e a McLaren têm dinheiro e estrutura para comprar uma vaga no grid – o que o chefe Zak Brown disse que não fará –, montar uma equipe para andar em todo o campeonato ou iniciar outra missão tão grandiosa quanto a busca pela Tríplice Coroa. 


     Com o grid e a competitividade da IndyCar em expansão, Kaiser, Juncos, Pippa e Tim Clauson não sabem se terão dinheiro para competir nas 500 Milhas no ano que vem. Tampouco se serão velozes o suficiente para estar no grid.

      A McLaren, mesmo que nunca volte a ser o que já foi, está na história da Fórmula 1 como um dos maiores times da história. É uma empresa de extremo sucesso, com carros de rua maravilhosos e uma legião de fãs no mudo. Alonso, mesmo que faça beicinho e decida nunca mais sentar sua bunda ibérica num carro de corridas, sempre será um bicampeão mundial, um dos pilotos mais talentosos de sua geração, cujos números não traduzem seu talento. Brown, o CEO, talvez perca o emprego, mas tem sua equipe de Endurance – a United – e é bem relacionado no meio para arranjar outra coisa, se for o caso. Foi um fiasco para nunca mais esquecer, mas aqueles que os derrotaram hoje nem podem se dar ao luxo de protagonizar um vexame mundial: buscam meramente sobreviver no automobilismo. Ou, ao menos, na prova que é objeto de cobiça para eles e tantos outros que não conseguem nem chegar perto da jarda de tijolos.


      Alessandro Zanardi até nisso é genial. Pelo Twitter, disse com todas as letras: espera que agora tenha ficado claro que as pessoas no automobilismo americano não são seres primitivos. Eles conhecem muito bem o seu negócio. Os fatos falam por si só, como bem atentou o jornalista Victor Martins pelo mesmo microblog: três carros ficaram de fora do grid. Todos de equipes europeias, McLaren e Carlin, extremamente bem sucedidas em suas operações no Velho Continente. Dois, de Chilton e Alonso, de pilotos egressos da Fórmula 1. O restante de um jovem colocado na alça de mira da categoria máxima – O’Ward, anunciado há poucos dias como novo membro do time de jovens talentos da Red Bull.


      Hoje, desculpem-me Pato, Max e, principalmente, Fernando: Pippa and Kyle were faster than you.


Ainda bem.

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