Takuma Sato agora tem o dobro de vitórias nas 500 Milhas de Indianápolis do que Scott Dixon e Tony Kanaan. O mesmo número de conquistas que Emerson Fittipaldi e Al Unser Jr., para ficar em só dois ases cujas habilidades puderam ser vistas uma penca de vezes via TV pelo fã brasileiro. É apenas o vigésimo sujeito da história a estampar ao menos duas vezes o rosto no troféu Borg-Warner. Você pode nunca ter imaginado ter que ler ou dizer isso, mas Takuma Sato anda muito e é um grande piloto - ao menos em Indianápolis, justo o palco da maior corrida do mundo.
Numa edição tão atípica e difícil da Indy 500, as minúcias foram essenciais. Sato conquistou sua vaga no Fast 9, o grupo dos mais rápidos que brigam pela pole position, por meros 12 milésimos sobre Colton Herta (2:35.9844 ante 2:35.9962, na soma das quatro voltas da classificatória inicial). Foi o último daquele grupo, mas garantiu vaga na sessão seguinte, onde de nono foi para terceiro. Outra vez, por uma ninharia (2:36.0300 contra 2:36.0438 nas quatro voltas de Rinus VeeKay, que largou logo atrás). Largar na frente era importante e lá estava ele, em sua estreia na primeira fila em Indianápolis, a segunda aparição de sua equipe, a Rahal Letterman Lanigan, na fila que abre o grid - a outra havia sido em 2004, na pole de Buddy Rice, que venceu aquela corrida.
Ultrapassar seria sabidamente difícil com o atual kit aerodinâmico, acrescido do aeroscreen e do calor maior de agosto. Não era um problema tão grande assim para Takuma: em 2019, ele brigou até o fim e chegou em terceiro, depois de estar duas voltas atrás dos líderes. Calou a boca de muita gente, entre as quais… eu mesmo. Fiquei incrédulo quando ele venceu a prova em 2017. Torci o nariz, admito. O leite sagrado de Indy em poder de um piloto atrapalhado, mais conhecido por bater do que por vencer, soou-me como uma heresia que tentei disfarçar, mas não engoli.
Mas Takuma, é em absoluto, um vitorioso merecedor em Indy. De que importa sua fama prévia à glória? Johnny Rutherford é um tricampeão inconteste da prova. Venceu apenas em sua décima tentativa. Até ali, nunca havia passado de um 18º lugar. Outra: e daí que seu currículo de vitórias não é assim tão numeroso (a segunda conquista em Indianápolis foi sua sexta vitória na carreira na Fórmula Indy)?
Ele igualou o número de vitórias de Wilbur Shaw e Mauri Rose, tricampeões da prova na primeira metade do século passado. Igualou-se na carreira a Parnelli Jones. E a Joe Leonard, que nunca venceu as 500 Milhas, mas saiu na pole em 1968 e foi bicampeão da Indy em 1971 e 72. Nomes que figuram sem contestações em qualquer lista de grandes da história. Na qual agora, de uma vez por todas, consta o nome de um homem nascido no Japão.
COMO HATTORI HANZO
A precisão ao nível de uma espada de Hattori Hanzo é uma marca do japonês em Indianápolis. Ele é apenas o 76º no ranking de voltas lideradas da história da corrida. Atingiu no domingo 78 giros na ponta. Apenas 14 outros homens venceram a prova e lideraram menos do que ele. É um número inferior até ao de Buddy Rice, aquele seu antecessor na equipe, esse sim um dos vencedores mais espíritas e difíceis de entender até hoje da prova, que já esteve na frente nas 500 Milhas por 99 voltas na história. O próprio chefe Bobby Rahal, com uma vitória como piloto, esteve na frente por 122 voltas. Ed Carpenter é o piloto ativo com mais voltas na ponta, 146, em Indianápolis, onde sua velocidade é inquestionável. Seu rosto, porém, não está no troféu.
E o que dizer de Scott Dixon? Nesta mesma estatística, pulou em 2020 do nono para o terceiro lugar no ranking histórico, com 463 voltas lideradas em Indianápolis na carreira. Ultrapassou numa tacada, entre outros, Mario Andretti e A. J. Foyt. Mas não conseguiu repetir o triunfo de 2008, mesmo sendo quase tão dominante quando havia sido naquela edição. O hexacampeonato parece estar a caminho, o segundo lugar de Mario Andretti na lista histórica de vitórias da IndyCar não está tão longe, mas o templo maior dessa - e de qualquer outra - forma de fazer automobilismo ainda causa sabores agridoces ao neozelandês.
Não deveria: depois do acidente que ele sofreu em 2017, precisa se sentir agradecido por ainda estar entre nós.
Dixon estava claramente incomodado após a prova. Reclamou que a bandeira vermelha não foi mostrada no acidente de Pigot. Um final com bandeira amarela sempre é frustrante, sobretudo numa prova dessas. A IndyCar disse que a reposição da barreira na quina do pitwall levaria mais de uma hora, para que fossem disputadas apenas quatro voltas - e o próprio realinhamento dos carros para levá-los aos boxes e a saída posterior para a relargada poderia consumir mais três voltas, o que geraria uma demora considerável para, possivelmente, uma volta em bandeira verde.
Há uma resistência no meio em aumentar a duração da prova como faz a Nascar quando invoca uma prorrogação. Os IndyCars também não podem estacionar no meio da pista e sair andando como se nada ocorresse: é preciso acionamento externo para ligar os carros. A transmissão já ficaria no ar por um longo período nos EUA, cinco horas de exibição em TV aberta, um tempo generoso, o que pode ter condicionado o pensamento dos responsáveis a não dar sobrevida à prova. É algo a se pensar para que não volte a ocorrer, mas houve motivos razoáveis para ter ocorrido. Apenas mais uma estranheza, nem tão grande, numa edição em ano maluco o suficiente.
GANHOU QUEM TINHA QUE GANHAR
Uma das razões para que as 500 Milhas de 2020 ocorressem foi evitar que as equipes perdessem os patrocinadores que pagam, em especial, por causa desta prova. Mesmo que fosse sem público, fora da data tradicional e mais uma porção de coisas. E aí, Bobby Rahal foi uma das vozes que se manifestaram sobre a importância da realização da prova. Tal qual fez quando Roger Penske, bem antes da pandemia, assumiu o comando do negócio, ao afirmar que o fato do Capitão ser também dono de equipe era irrelevante: seu profissionalismo, capacidade e conduta eram gabaritados de tal forma que um conflito de interesses, neste caso, estava descartado. Ele tem roda a razão.
Se Indianápolis é a razão de ser da própria Indy, o que dizer da importância de Sato em angariar a NTT como patrocinadora principal da categoria, posição que a gigante japonesa de integração de sistemas ocupa desde 2019. Takuma, já um vencedor da Indy 500, foi ao Japão com a cúpula da Indy para apresentar a categoria à cúpula da empresa. Um de seus chefões declarou certa feita ter visto Takuma num programa de TV do Japão onde ficou impressionado com o depoimento do ás local sobre o quão diferentes e especiais as coisas ficaram em sua vida após vencer as 500 Milhas.
É um brinde ainda à Honda, parceria de primeira grandeza da Indy - vide a permanência como fornecedora de motores única de 2006 a 2011, numa época de vacas magérrimas. Os japoneses vencem exatos 25 anos após a primeira largada de um motor Honda na prova, numa vitória que escapou por entre os dedos na infame punição a Scott Goodyear na última relargada em 1995. De quebra, a vitória veio três dias após o primeiro triunfo dos japoneses na Indy completar um quarto de século: foi em 20 de agosto de 1995, no que também foi primeira vitória da carreira para o então novato brasileiro André Ribeiro, da Tasman, no oval de New Hampshire.
A Honda já poderia ter participado da Indy 500 em 1994, mas o equipamento era pouco competitivo e o único time à época com os propulsores nipônicos preferiu alugar carros Penske para não correr o risco de ficar de fora do grid dos 33. O dono da equipe? Um certo Bobby Rahal… Esta foi, ainda, a vitória para Sato pela Rahal (ele estava na Andretti quando ganhou em 2017) que era para ter vindo em 2012, quando fez grande prova e bateu na última volta ao tentar passar Dario Franchitti - e aí, meu amigo, se hoje falamos o quanto Dixon é bom, vencedor e o quanto as coisas acontecem pra ele, precisamos lembrar do que esse escocês fazia em seu auge - e assumir a ponta.
MADE BY HONDA
O apoio da Honda ao seu prodígio sempre me deixou com a pulga atrás da orelha. Sato sobreviveu na Fórmula 1 e Fórmula Indy com tal suporte. Sempre tive a sensação de que qualquer outro piloto que fizesse o que ele já fez seria carta fora do baralho há muito tempo não fosse tal patrocínio. Hoje, os japoneses colhem os frutos da persistência com este veloz rapaz de 43 anos. E eu vejo de outra forma: é bom que ainda haja uma empresa de tal envergadura que acredite e apoie um profissional como a montadora fez com o agora bicampeão.
Diferente, por exemplo, da situação de Marco Andretti, outro que, não fosse um suporte externo pouco convencional (do pai dono de equipe, neste caso), já estaria na mesma que Buddy Rice (olha ele aí de novo): limpando os carros após a prova - não é exagero, veja o Instagram da equipe Dreyer & Reinbold e comprove. Depois do sopro de luz da classificação, Andrettinho tornou-se o primeiro pole position desde 2001 a não liderar nenhuma volta da prova - quando Scott Sharp bateu na saída da primeira curva na primeira volta. Em situações menos inusitadas, o último pole a ir para casa sem cruzar nenhuma volta na frente havia sido Scott Brayton, em 1995. Hora de Marco rever, de vez, os rumos da carreira, bem como de Michael revisar o que quer para seu time.
De volta a Sato: o japonês atinge a incrível marca de 100% de vitórias em edições das 500 Milhas de Indianápolis nas quais Fernando Alonso largou. Que ironia. E pensar que ambos estavam ali naquele grid por causa da Honda. Sato por sua lealdade (recíproca), Alonso pelo que foi o estopim de um comportamento problemático a ponto de se sobrepor a um dos maiores talentos da história. A conquista da Tríplice Coroa foi uma boa sacada do espanhol e da McLaren no auge da crise dos papayas com os japoneses. Uma forma de oxigenar a carreira de Alonso - e afagar seu ego - num momento em que não havia nenhuma chance de ele voltar aos seus melhores dias na Fórmula 1.
Que esteja claro à direção da equipe a escolha pelo lado errado naquele racha. A aventura de Alonso o divertiu em 2017, com o suporte da equipe com as máquinas mais rápidas de Indianápolis à época e um carro com muita aderência, que exigia pilotagem bem menos desafiadora do que em 2019 e 2020. Longe da vitória nos dois últimos anos, o espanhol volta para onde jamais teria saído não fossem as próprias atitudes, a Fórmula 1, já em 2021. E talvez nunca mais retorne à Indianápolis, em que pese parecer ter apreciado a aventura, de modo geral.
Quem mais ganhou nisso tudo? A Indy, com a quebra de um longo tabu sem um piloto da Fórmula 1 em seu grid e, ainda por cima, com o retorno da McLaren em tempo integral, ao lado da já estabelecida equipe Schmidt Peterson. Que a categoria saiba capitalizar e ampliar os dividendos desta aventura que, parece, chegou ao fim de forma decepcionante. Pudera: se a Penske não conseguiu encontrar velocidade em Indianápolis neste ano, como Alonso conseguiria? com todo o respeito ao espanhol, mas quem é ele na fila do drive thru do Taco Bell da 16th street? Talvez isso diga muito sobre o nível da Indy - e do quanto Lewis Hamilton estava errado há três anos.
JÁ É MAIO?
Vejo alguns fãs com reclamações sobre a Indy 500 ter sido tediosa neste ano. Já havia ocorrido em 2018, quando da estreia do atual kit aerodinâmico - apenas sem o aeroscreen, ainda, à ocasião. O que me faz pensar que as 500 Milhas, em especial as edições de 2012 a 2017, deixaram o público, talvez, mal acostumado, como as provas da Indy em oval num todo: nem sempre a prova será um grande passa-passa, como em boa parte das provas da Nascar em pistas com placa restritora - nas demais, a ação há algum tempo também não é tão frenética quanto parece ser.
Sim, a prova pode ser melhor e isso passa pelos carros. Mas a audiência da Fórmula 1 não caiu depois de momentos aborrecedores nos anos 90 e 2000. Nem agora, quando embora as disputas de meio de pelotão estejam melhores do que nunca em 70 anos de história, a categoria vive a maior hegemonia de todos os tempos, a terceira nos últimos 20 anos, o que tem tornado acompanhá-la mais previsível e entediante do que as campanhas eleitorais que vem aí.
Indianápolis e as provas da Indy como um todo devem buscar ser excitantes aos fãs por si só, independente de seus referenciais, mas esteja certo: há formas de automobilismo muito menos empolgantes do que uma edição ruim das 500 Milhas. Onde, por menos ação que se tenha, a oportunidade de vencer continuará lá - o vencedor da prova deste ano é a prova cabal disso.
Para que tal evolução ocorra, porém, era preciso sobreviver. À crise, a 2020 e a tudo o que ambos trouxeram. E isso as 500 Milhas conseguiram. Estão de pé. Possuem o sujeito com as melhores credenciais possíveis em toda a face da Terra para torná-la ainda maior e melhor. Indianápolis não vive seu auge, mas ainda é o Maior Espetáculo das Corridas. Já estamos ansiosos pela próxima.
Aliás… Is it May yet?
Texto de Geferson Kern
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